Estava pesquisando na semana passada sobre câmbios automáticos, para uma matéria sobre os prazos de troca de seus fluidos. Numa das conversas, soube que a fábrica terceiriza seus câmbios automáticos (aliás, quase todas o fazem) e que a caixa vem pronta para ser instalada na linha de montagem. Com o fluido e até lacrada. Como se trata da maior fornecedora deste equipamento do mundo (a japonesa Aisin), óbvio que todas as fábricas de automóveis a recebem deste mesmo jeito e nem controle de qualidade é feito antes de chegar à linha. Talvez uma ou outra unidade, por amostragem. E olhe lá..
É o que se chama de “Qualidade Assegurada”: a fornecedora é certificada, mantém rígidos padrões internacionais de qualidade e talvez receba uma visita esporádica de algum engenheiro do cliente. Em compensação, quando a coisa desanda é um caos gigantesco, caso da maior fabricante mundial de airbags, a japonesa Takata. Há uns 25 anos, algum “gênio” de sua engenharia sugeriu substituir o gás utilizado para expandir a bolsa inflável por outro mais barato e com maior poder de explosão: nitrato de amônia. Ele estava correto: era realmente de uma enorme eficiência, e ainda ampliada depois que absorvia alguma umidade. Tanto que, além de inflar a bolsa, explodia também o próprio detonador e lançava estilhaços de aço a 300 km/h. Feriu centenas, matou dezenas, provocou recall que envolveu mais de 100 milhões de automóveis e faliu a Takata. Aliás, foi exatamente o nitrato de amônio que destruiu o porto do Beirute há alguns dias.
Mas a terceirização é caminho sem volta. Grandes fornecedoras de peças se transformaram em “sistemistas”. Não fornecem somente os instrumentos do painel, mas todo ele, com porta-luvas, comandos, iluminação, frisos, revestimento, pronto para a linha de montagem. A fábrica não recebe mais a roda de um e pneu de outro, mas a dupla montada…e calibrada.
Não é somente a indústria automobilística que terceiriza componentes, até por uma questão de custo: especialista num produto oferece melhor qualidade e menor preço. O caso da Nike é bem emblemático: sabe quantas fábricas ela tem no mundo? Nenhuma!
A gigante de roupas esportivas tem equipes especialistas nos mercados de consumo, seus volumes de demanda e tendências; na pesquisa e desenvolvimento de materiais, processos e novos produtos; em avaliar e terceirizar empresas para produzir seus modelos, no controle de qualidade, nos contratos internacionais e locais com importadores e atacadistas. E também na divulgação, marketing, publicidade e promoção da marca. Mas não fabrica nada…
Também as fábricas de celulares. Alguém imagina que a Apple produza algum de seus aparelhos? Ela terceiriza tudo para o Taiwan, China, Hong Kong e outros asiáticos com mão de obra especializada, de qualidade e baixo custo.
No caso dos automóveis, existem gigantes mundiais como a Bosch, ZF, TRW, ZF, NGK, Valeo, Marelli, Philips e outras presentes nas principais linhas de montagem. O equipamento elétrico de qualquer carro, seja americano, brasileiro, indiano, europeu, ou asiático, será provavelmente da Bosch, Marelli ou Lucas.
A indústria automobilística chinesa, por exemplo, apesar de recente, teve uma rápida evolução de qualidade. Primeiro, porque o governo chinês, mais esperto que o nosso, obrigou as multinacionais interessadas em produzir localmente a se associar a algum grupo chinês. Ou seja, know-how gratuito. Além disso, encontrou um mercado globalizado com possibilidade de contar com os melhores componentes do mundo. Ou seja, potencial de qualidade comparável com a de qualquer outro país.
Não foi à toa que Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford Motor Company do Brasil, durante o lançamento do Territory — produzido na China — foi perguntado por um jornalista se não haveria restrição do consumidor ao veículo por sua procedência chinesa. Golfarb respondeu com outra pergunta: alguém deixaria de comprar um celular da Apple por ter sido fabricado em Taiwan ou confia na marca que o assina?
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
(Atualizada em 22/08/20, às 15h20, correção do nome nitrato de amônio, estava ‘amônia’)
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