Trabalhar na indústria automobilística já foi sonho de todo profissional, seja da área técnica, seja da área administrativa. Salários normalmente acima da média do mercado, bons planos de saúde, seguro de vida em grupo, veículos com desconto para funcionários e familiares, participação no lucro da empresa, viagens com todo o conforto em hotéis de qualidade e voos internacionais em classe executiva. E sem falar do time gerencial, com veículos designados com todas as despesas pagas, bônus de final de ano e outras facilidades.
Lembro-me de quando era estudante de engenharia em 1969, todo orgulhoso fazendo estágios na Scania e na Chrysler do Brasil e iniciando minha carreira de engenheiro em 1970, quando ingressei na Ford. Na época era tudo muito difícil em termos de equipamentos e facilidades e os profissionais gastavam seu tempo na parte técnica colocando literalmente a mão na massa, se dedicando, estudando e se aperfeiçoando diariamente através de seus próprios meios, com muita força de vontade.

Hoje em dia a parte técnica é praticamente disponível para todos, através dos conhecimentos adquiridos/compartilhados, bulas, regras, procedimentos e dados estatísticos. Por essa razão, é mais fácil ao profissional encontrar tempo para se dedicar também à parte administrativa, inclusive se comunicando bem em inglês e outros idiomas, requeridos no processo contínuo de globalização das indústrias. Também ocorrem as tomadas de decisão políticas que às vezes não fazem muito sentido técnico, porém agradam internamente à companhia. Por exemplo, reduções de custos e opiniões tendenciosas a respeito dos atributos, comparativamente com a concorrência, elegendo “o nosso é sempre o melhor”. Às vezes, as decisões técnicas se chocam com interesses políticos e financeiros, gerando mal-estar dentro do time de engenharia e dificultando os trabalhos.
Era trivial o contacto com os veículos de todas as marcas como maneira de entender o mercado e analisar os pontos fracos e fortes de cada um. Neste escopo, formei algumas particulares conclusões a respeito das fábricas de automóveis no Brasil. A Volkswagen é a que mais valoriza a parte técnica no seu time de desenvolvimento e a General Motors e a Ford são as que mais valorizam os processos administrativos, burocráticos talvez. A GM é a mais conservadora com seus produtos, que se não são excelentes, também não são ruins. “O ótimo é o inimigo do bom” diz o jargão dentro da empresa. Para que gastar mais se no nível que está o consumidor aceita e valoriza o produto? Creio que a GM é a empresa que mais se aproxima de um ótimo equilíbrio de custo-benefício para os seus veículos. A Ford é muito parecida com a GM, porém às vezes valorizando mais os custos operacionais do que o projeto em si. E aqui vão algumas histórias das fábricas de automóveis no Brasil.
General Motors
Lembro-me do Monza, o primeiro carro mundial da GM, lançado em 1982 no Brasil. O excelente “Projeto J” tinha tudo para iniciar bem, porém deu uma derrapada, com uma carroceria hatch de duas portas, versão que nunca existiu na Europa e na contramão dos sedãs em alta no mercado europeu. Com motor 1,6-L a gasolina, fraquinho com 72 cv, câmbio de quatro marchas, e uma suspensão dura e barulhenta, inclusive com a exagerada altura do veículo em relação ao solo, quase seu lançamento virou um desastre total.

O Monza somente decolou em 1984 na versão sedã, com motor 1,8-L a gasolina e álcool, realmente potente, câmbio de cinco marchas e suspensão reajustada incluindo a diminuição da altura do veículo. Veja que após as mudanças, motor, câmbio e suspensões, o Monza foi campeão absoluto de vendas durante três anos seguidos, 1984, 1985 e 1986. A GM tinha a vantagem de ter a fábrica de motores no Brasil e poderia ter um no início do projeto, preferindo o potente motor 1,8 e o câmbio de cinco marchas, também disponível.
Ford
E veio o Ford Escort em 1984, primeiro carro mundial brasileiro, moderno com suas linhas inusitadas de “dois volumes e meio”. Poderia ter seguido o seu projeto original para o Brasil, com o moderno motor CVH e suspensões mais firmes. Acabou lançando o Escort com o antigo motor CHT e suspensões ajustadas em maciez. Na realidade o motor CHT nasceu do motor Renault Sierra que foi amplamente utilizado na Europa nos modelos R8, R10, R12 e no Brasil no Ford Corcel.

O motor CHT com 1.555 cm³, com novas câmaras de combustão e novo comando de válvulas, já estava em seu limite de cilindrada, não sendo mais possível, aumentá-la por exemplo, para 1,7-L ou 1,8-L. Era um motor econômico, porem seu ponto fraco era o cabeçote, com pouca parede entre os cilindros, deixando-o crítico em termos de queima de junta e vazamentos em geral pelos dutos de água e óleo. As camisas removíveis equilibradas em calços entre elas e o bloco também dificultava o processo de vedação do cabeçote.
Foi uma enorme oportunidade que a Ford perdeu em deixar de construir no Brasil uma fabrica dos motores CVH que poderiam chegar até 2,0-L de cilindrada, suprindo com folga as exigências dos lançamentos da marca na época.
Em 1985/1986 a Ford já tinha um motor CHT a álcool, totalmente desenvolvido com injeção eletrônica multiponto, inclusive com um protótipo funcional instalado em um Escort XR3. Oportunidade de ouro para a Ford sair na frente e por decisão de algum executivo conservador o projeto não foi aprovado.

Volkswagen
A VW teve um forte crescimento durante a presidência de Wolfgang Sauer, no período de 1973 a 1989. Alemão naturalizado brasileiro e já falecido, Sauer, valorizou como ninguém o time técnico dentro da empresa, conseguindo com que a marca continuasse na fama de produzir veículos robustos e confiáveis. Ele foi o grande responsável pela internacionalização da VW do Brasil e com os lançamentos e continuidade dos veículos Passat, Gol e Voyage, sucessos absolutos de vendas ao longo dos anos.

E mesmo assim o Passat em seu lançamento sofreu com os engates de marcha imprecisos, alto consumo de óleo e barulhos generalizados na carroceria. Já o Gol com seu motor dianteiro arrefecidos ar, mesma configuração do Fusca, quase põe tudo a perder com dirigibilidade sofrível, barulhos e fraco desempenho. Recebeu dose extra de força e qualidade com o motor EA-827 1,5 e 1,6, fazendo crescer as vendas exponencialmente, com sucesso consumado.

Toyota e Honda
Falando dos japoneses, creio que a Toyota e a Honda sejam hoje em dia as empresas que têm mais tecnologia e qualidade desenvolvida em seus produtos. Com a filosofia de melhoria contínua, aprendendo com o que não deu certo e rapidamente corrigindo o erro, as duas empresas são um exemplo para o mercado. E mesmo assim acontecem problemas sérios, como, por exemplo, o caso do tapete do Toyota Corolla que enroscava no pedal do acelerador, com risco à segurança. Exemplo claro de como faz falta o time de integração do produto que com grande experiência verifica ponto a ponto o que pode dar errado no veículo. É o pessoal que faz a diferença dentro da fábrica.
Lembro-me em visita à fábrica da Honda em Sumaré onde fiquei impressionado com a qualidade das peças estampadas em chapa e com a precisão dos injetados em plástico, principalmente o painel dos instrumentos. Todos os funcionários do menos ao mais graduado vestiam capas brancas e bonés com o logotipoHonda, valorizando a marca e mantendo ideia corporativa que todos apresentam a mesma importância dentro de suas funções.

A lição que fica é fazer certo da primeira vez, sem pensar em reduções de custos que possam impactar na rejeição por parte do consumidor. Projetos inteligentes bons, bonitos e baratos não são fáceis de conseguir, porém, deve ser a meta de todos, engenharia, manufatura e marketing.
CM